sábado, 20 de agosto de 2011

Quarenta e um anos

Meu pai deixara este mundo. Quarenta e um anos, enfarte fulminante.
Elias, alto, corpulento, um charuto após o outro.
Nascido em Mariopol, Ucrânia, viera para o Brasil com os pais e o
irmão fugindo da Revolução Comunista,
recém instalada. Vieram de navio, naqueles tempos difíceis.
 
No Novo Mundo, estudou muito e formou-se em Engenharia Agronômica, na
Luís de Queiroz, de Piracicaba.
Lá conheceu minha mãe, Lucilla Camargo Simões.
Na profissão, continuaria viajando: era transferido de cidade de
tempos em tempos, para administrar diferentes sítios.
Bastos, Bauru, Pindamonhangaba, Tietê...nem imagino hoje como poderia
ser tal vida de mudanças.
Teríamos de ter poucos móveis e haveres. Amigo de infância, para mim
nenhum. Não esquentávamos lugar.
 
Meu pai era pessoa muito calada. Prefiria que as ações falassem por si.
Como sempre retornávamos a Campinas, sede do Instituto Agronômico e do
Serviço de Sericicultura,
sua especialidade, minhas principais lembranças da infância e
juventude são de lá.
Sempre nos dava presentes, e tivemos muitos brinquedos. Nas férias
escolares, íamos para a Praia do Gonzaga, em Santos.
 
Foi certamente num julho, o céu todo carregado de balões, que caiu um,
em frente à pensão.
Como era bem alto, conseguiu apanhá-lo antes da molecada. Tentamos
acendê-lo novamente, mas sua vida útil
estava esgotada, e assim o único balão que tentei soltar na vida não subiu.
Também de Santos, minhas primeiras lembranças de bar. Sob a marquise
do Hotel Atlântico, meu pai tomava
seus chopes nas mesinhas da calçada, enquanto acompanhávamos, no céu
escuro, míriades de balões rumando para ao mar.
Em frente, a fonte luminosa mudava de cores e de intensidade das suas
àguas dançantes.
 
Por isto, sempre tive uma ligação nostálgica com bares de calçada,
certo fascínio, como se todos fossem badalados
cafés de Paris, que conheceria muitos anos depois. Um certo pendor
para a boemia, impossível de ser bem realizado
na São Paulo como a conhecemos hoje.
Sempre declarou-se um livre pensador, e embora minha mãe fosse, por
tradição familiar, católica fervorosa,
nunca quis influenciar nossa educação religiosa. Era portanto, muito
flexível e tolerante, ainda mais para um estrangeiro.
Queria que os filhos escolhessem seus próprios caminhos, e assim foi
feito. Como ele, hoje sou também um livre pensador.
Essas foram algumas coisas que puxei dele, além do hábito da leitura.
 
Ele lia constantemente, e assim conheci a Coleção Terra, Mar e Ar, a
Coleção Amarela e muita coisa mais,
pois adorava romances policiais e de aventuras. Costumava, às vezes,
ler para mim e Ivan, meu irmão.
Como no caso dos Três Mosqueteiros, de Dumas.
Fazia-o por prazer nisto, pois desde os seis anos eu já lia perfeitamente.
Também o amor pelo cinema, e desde tenra idade tornei-me um cinéfilo.
Como, ao assistir a pavorosa transformação da Rainha Má em bruxa, em
Branca de Neve, quase tive uma convulsão,
minha mãe tinha feito a promessa de não mais ir ao cine, se eu sarasse.
Exagêros religiosos...mas assim, depois quem nos levava às matinês de
domingo era meu pai.
 
Depois da sessão, parada com direito a empadinhas de palmito e
refrigerantes no Bar Ideal, bem no centro
de Campinas... essas foram boas coisas, que me marcaram para sempre.
E outras, para mim não tão boas, como seu hábito do fumo, que lhe
seria fatal, e o jogo.
O bom Elias era mestre em carteado, principalmente pôquer; sinuca,
xadrês, atividades que lhe tomavam muito tempo
no Clube de Cultura Artística. Às vezes, noites inteiras, e muito
dinheiro...hoje, nem posso ouvir falar em jogo,
sequer Mico Preto e Dominó.
Racionalizo isto como perda de tempo, mas creio que as causas são bem outras.
 
Foi-se muito cedo, e sequer tivemos tempo para um diálogo mais
profundo e adulto.
E fica-se assim, tentando reencontrar o pai num parente mais velho, ou
num médico, ou qualquer pessoa que
demonstre segurança e autoridade. Até que descobrimos que esta pessoa
reside em nós mesmos,
e aí estamos prontos para a árdua tarefa de ser pai também.
E para o ciclo recomeçar...

meu pai Elias,minha mãe Lucilla, eu e meu irmão Ivan
Praia do Gonzaga, em junho de 1942
                                                                         
texto e foto enviados por: Luiz Saidenberg

5 comentários:

  1. Saidenberg
    assim como sua hsitória o meu pai também foi um livre pensador
    assim como você curti muito os lugares de Santos e, também São Vicente
    assim como você tomei o gosto pela leitura e cinema pelas mãos de meu pai

    espero que um pouquinho disso tudo eu tenha conseguido passar para os meus filhos!
    Saidenberg escritor querido de histórias maravilhosas, um grande abraço
    ...e agradeço muito a sua participação

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  2. Olá, Luiz!

    Sabe, ao seu modo, meu pai também era um livre pensador, de certa forma... Mesmo sem ter cursado grandes cursos escolares, meu amado pai era um sábio e semre expressavaseu pensamento, através de suas atitudes sensatas.
    Muito bacana a história de seu pai,que é sua história.
    Valeu!
    Muita paz!

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  3. O seu pai faleceu muito jovem, mas lhe ensinou pelo que você conta muitas coisas, mas nem todos os pais são assim, muitos pais não amam os seus filhos e por essa razão nada ensinam .
    É muito importante a presença de um pai na vida de seus filhos.

    João Pedro

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  4. cada vez mais gosto deste blog esta história me remeteu a minha infãncia, adolescência com meus pais em Santos onde tivemos todos muitos momentos que jamais esquecerei

    Bia

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  5. Linda mensagem!Gostei muito principalmente dos 3 ultimos parágrafos,quanta verdade...

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